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Versos do poeta marginal François Villon ganham reedição
Villon decaiu do Mestrado em Artes à convivência com a escória social (Reprodução)

Sábado, 22 de julho de 2000, 02h40min
A Editora da Universidade de São Paulo traz novamente ao cenário brasileiro a obra do poeta francês François Villon nas traduções do poeta Sebastião Uchoa Leite, desta vez superando os méritos da edição pioneira da Editora Guanabara, de 1987, pois a amplia, corrige, e apresenta os poemas na língua de origem. Villon, no Brasil, foi traduzido anteriormente por Péricles Eugênio da Silva Ramos e Afonso Félix de Sousa e, mais esparsamente, por Décio Pignatari e Augusto de Campos, mas foi com a tradução de Uchoa Leite que ganhou maior vulto sua obra "brasileira".

De Villon - famoso não mais por sua obra do que pelo percurso marginal - ficou uma obra sólida e uma biografia inexata, de que não se confirmam fatos, datas, pessoas. Sabe-se que ele nasceu em 1431, em Paris, chamado François de Montecorbier (adotando posteriormente o Villon de seu pai adotivo); cursou bacharelado e recebeu grau de Mestre em Artes da Universidade de Paris; mudou-se da capital francesa após matar um padre numa briga de rua em 1455; perdoado, voltou no ano seguinte, mas logo, com alguns comparsas, assaltou um colégio e partiu novamente, para fugir, outra vez, da lei; viveu algumas passagens por prisões francesas (Meung-sur-Loire, Châtelet), para, após sua prisão em 1462, por participar de outra rixa, ser condenado à morte; entretanto, mais uma vez perdoado, sua pena foi a de banimento de Paris, e desapareceu definitivamente. Não se sabe quando, onde e em que condições morreu.

Já quanto à sua obra, publicada mais de 25 anos após seu desaparecimento, pode-se dizer que é muito mais definida e definitiva. São centenas de poemas, de construção rigorosa e inter-relacionados, em que se pode ler o fim da era medieval e o nascimento da moderna, em baladas irônicas que desde então atravessam os séculos despertando o interesse de leitores, poetas e estudiosos de todas as línguas.

A edição ora lançada - compreendendo O Legado, O Testamento e Poesias Diversas - é detalhada por uma vasta introdução do tradutor e por um conjunto de mais de 500 notas ao final do volume, que inclui ainda a bibliografia consultada por Uchoa Leite e a cronologia da vida, obra e época de Villon. Excluiu-se de Poesia, todavia, as ditas "baladas em jargão", em que talvez a forma da poesia de Villon ceda mais aos influxos da sua "vida bandida" caracterizou, assumindo a linguagem das pessoas com as quais conviveu, e que certamente mereceriam do tradutor o desafio de trazê-las para o português, não fosse a impossibilidade que o impediu de encontrar em nossa língua equivalente para o jargão utilizado por Villon em suas baladas.

As traduções de Uchoa Leite, desta vez, resolvem alguns dos problemas, não todos, que a língua portuguesa teve para cumprir a métrica rigorosa e truncada de Villon na edição anterior, e têm, a meu ver, seu principal valor em oferecer, mais que um Villon brasileiro - como o fez Pignatari na sua tradução paulistana da "Ballade de la Grosse Margot" - uma obra que, na soma de todos os cuidados da edição, é o Villon brasileiro, na troca contínua entre as páginas francesas e brasileiras da Poesia bilíngüe, em que se lê, respectivamente, François Villon e um outro que o aproxima do leitor.

Para aproximar-se ainda mais, considere o leitor a importância que há em conhecer a biografia de Villon para melhor compreender sua obra, o que se justifica, por exemplo, ao demonstrar porque para ele amor e dinheiro estavam sempre confundidos. O amor, para a vida de Villon, era aquele pelo qual se paga, o das prostitutas: "Se elas amam só pelo ouro,/ Vai-se a elas por uma hora./ Pois dão-se a todos com desdouro/ E riem, quando a bolsa chora." E, na extensão de suas críticas à sociedade da época, todo amor, mesmo o selado por casamento, era pago: "Deve-se amar o que à honra apraz./ Resta saber se as de má fama,/ Com quem bom acordo se faz,/ Não já foram honestas damas."

Lembre-se que Villon atravessou, descendo, a sociedade francesa, se não desde a alta burguesia, ao menos desde posições muito mais privilegiadas que aquelas em que viveu os últimos anos "conhecidos" de sua vida, indo do Mestrado em Artes à escória.

E o poeta deste Poesia denuncia o tempo todo essa sua vida, sendo possível até mesmo imaginar o conjunto de sua obra como uma Commedia às avessas, igualmente composta de infernos, purgatórios e paraísos, de que ele era protagonista e narrador, mas em que, sempre ao contrário do que viveu o Dante personagem, as coisas eram todas reais e urgentes: "Vai carta, correndo, e salta,/ Mesmo sem pés e sem língua: Vai dizer que morro à míngua/ E que a penúria me assalta." Na Commedia de Villon, as mulheres não são ideais, não há grandes homens ou feitos importantes. O que há é a vida crua, com putas, canalhas e imoralidades, num cortante depoimento sobre as condições em que o poeta e sua época se encontravam na França ao final da Idade Média.

Em sua introdução ao volume, o tradutor afirma, com acerto, que "um Villon apenas biográfico é redundante. Um Villon abiográfico faz-se impossível", confirmando nossa convicção de que ao nome do poeta Villon nunca deixarão de estar associados o mito, a lenda, a fábula, etc, de seu torto itinerário.

As "obras" de Villon apresentam-se sob títulos que nos permitem imaginar um poeta constantemente sob o signo da morte, vislumbrando que sua sina era sofrê-la repentina, injustificada, inominadamente, como, de fato, sofreu, e que poderia, apressado, legar ao futuro apenas a sua poesia, a sua visão, as suas dúvidas: "Um seco e negro escovilhão,/ Não teve tenda ou pavilhão/ Que já não houvesse legado,/ E não tem mais que algum tostão/ Que logo mais terá findado" - este era Villon.

Ezra Pound - que muito o admirava, lendo-o, estranhamente, como um poeta "destituído de imaginação", "quase que destituído de arte" - dizia que a força de Villon está em não pedir desculpas e afirmava: "Villon ocupa lugar único na literatura porque é o único poeta a não ter ilusões"; e mais à frente: "(...) ele canta as coisas tais como são. Ousa revelar-se. Sua depravação não é uma atitude cultivada para efeito literário."

(Interessante, ao ler Villon e pensar na relação vida-obra que nele é de extrema relevância, imaginar e lamentar... o que leríamos na poesia de outro mito francês, Arthur Rimbaud, se tivesse optado por mudar de vida, mantendo-se a escrever poemas. Rimbaud, sem dúvida, teve suas razões, por mais insondáveis que nos pareçam, para abandonar a poesia, assim como Villon, mas não sabemos se este continuou escrevendo após seu banimento de Paris, quando sumiu em definitivo, se não pelo fato de a obra por eles deixada, inquestionavelmente, ombrear, e mais vezes ainda superar, a de tantos poetas de melhor sorte e fama.) Por seus antecedentes, Villon não é exatamente o tipo de pessoa que abrigaríamos em casa, mas esta Poesia, em edição bilíngüe, realmente merece trazer em sua capa a indicação de que é "indispensável a qualquer biblioteca de literatura e poesia digna desse nome, e a todo apaixonado da arte do verso" - se não pela carga poética da vida que ali é contada, ao menos pela carga de vida da poesia de alguém que, sem pés, salta e, sem língua, diz: o bandido François de Montcorbier, o poeta François Villon.


Poesia, de François Villon. Tradução, organização e notas de Sebastião Uchoa Leite. Edusp, 456 págs. R$ 20,00.



Tarso M. de Melo é poeta, autor de A Lapso (Alpharrabio), e editor da revista Monturo

Jornal da Tarde


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